domingo, 19 de outubro de 2008

Prólogo 1: Este blog está começando a parecer revista Claudia ou algo que o valha de tanto falar de relacionamentos. Mas eu realmente espero que não tenha o mesmo enfoque de uma revista desse tipo. De qualquer modo, ideias de posts não se seguram, são polidas e liberadas, e não é minha culpa se todas as minhas ideias ultimamente têm relação com esse tema.

Prólogo 2: Filosofia barata - costuma-se dizer daquele tipo de pensamento clichê, pouco elaborado, óbvio demais, que por isso empobrece a filosofia em que supostamente se baseia. (Já se disse também que o cliché e o óbvio não o são por acaso, mas isso são outros quinhentos.) Porém, trazer filosofia para situações corriqueiras, banais, terrenas é empobrecê-la? Se eu quiser dialogar com Hannah Arendt - e ter a ousadia de reinterpretá-la - ao falar sobre relacionamentos, estarei dessacralizando sua filosofia e barateando seu pensamento? Sei lá. Acho mais produtivo pensar em novas maneiras de ler Arendt do que gastar tempo com autocriticas que visam a proteger um mundo perfeito de ideias intangíveis. De qualquer modo, fica registada a possível crítica no título do post, em homenagem às opiniões em contrário - e não era a própria Hannah quem tanto gostava da pluralidade?

Vamos ao post.

Algumas experiências práticas dos últimos anos levaram-me a pensar bastante sobre a libertação em termos de relacionamentos interpessoais. Parece uma ideia contra-intuitiva, porque tudo o que queremos é o contrário: o enlace, a companhia, o compratilhamento, um pouco de auto-insuficiência, alguma dependência, aquela coisa toda de "é impossível ser feliz sozinho". Contudo, existem momentos em que, por motivos os mais variados possíveis, a convivência é dolorosa demais, e cortar relações é desejável e necessário. É o momento de libertação: a sensação de que não mais se depende de alguém (seja amigo, amado, amigo amado ou qualquer outra coisa), e de repente mil supernovas (parece-me que não têm esse nome por acaso...) explodem no universo, mostrando zilhões de novas possibilidades de vida.

Hannah Arendt também fala da libertação, mas no contexto da vida política do homem - que nada mais é do que uma vida de relacionamentos interpessoais. Ao tratar da liberdade política dos antigos, Arendt afirma que o homem precisava em primeiro lugar libertar-se das "necessidades da vida", aquelas relacionadas ao provimento da própria subsistência. Mas a plena liberdade política era um passo além da libertação; requeria também "a companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado, e (...) um espaço público comum onde estes pudessem ser encontrados - ou seja, um mundo políticamente organizado, no qual os homens livres se pudessem integrar através da palavra e da ação" (trecho de Entre o Passado e o Futuro). Como se dá, contudo, a aquisição da liberdade num contexto em que a libertação é feita em relação à própria companhia e não às necessidades naturais?

Se libertação não significa automaticamente liberdade, a ideia de que a libertação do relacionamento traz "liberdade" é falsa. A libertação pressupõe violência contra um estado anteriormente tomado como natural, seja ele a dependência oriunda das necessidades materiais, seja o costume de depender emocionalmente de alguém. E, segundo a própria Arendt (cf. "Da Violência" em Crises da República), a violência não cria poder político, apenas o destrói.

Se a libertação não implica criação, a verdadeira liberdade em termos de relacionamentos interpessoais deve advir da superação dos ferimentos criados pela violência. Cortar relações liberta, mas, no fim das contas, significa negar inútil e dolorosamente a predisposição à interdependência humana. Ser livre é, após superar a dor da libertação, aceitar a própria independência em relação ao outro sem fugir da convivência. É, enfim, ter poder sobre o próprio destino em harmonia com o poder do outro.

E assim eu chego ao clichê da paz e harmonia e felicidade geral da nação, e fecho este post de filosofia barata. Boa noite, Hannah!

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